terça-feira, 30 de novembro de 2010

75 ANOS

30 de Novembro de 1935. Passam hoje 75 anos sobre a morte de Fernando Pessoa.

Quatro dias após este acontecimento, Miguel Torga escreveu, no seu Diário, estas palavras:

Vila Nova, 3 de Dezembro de 1935 - Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.
Torga, Miguel, 1967, 5ª ed, Diário I, Coimbra, ed. do Autor.


NOTICIA NECROLÓGICA DA MORTE DE FERNANDO PESSOA
[tal como foi publicada no Diário de Noticias de 3-12-1935]
Palavras de Luís de Montalvor

Para ler a notícia, aceder a:

.http://www.triplov.com/fernando_pessoa/Biografia/Necrologio.html




Marcelo Vidal performs J.S. BACH - CHACONNE (1)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Álvaro de Campos, sensacionista

 
«Tenho pela vida um interesse ávido que busca compreendê-la sentindo-a muito.»
Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da rua do Ouro
Acordar do Rossio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, a gare que nunca dorme
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo

À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo
E (...)

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne.
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode
acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
Seja (...)

A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas...
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de individualidade para quem repara...
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Syringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas.
Para aumentar com isso a minha personalidade.
Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.

Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras —
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios
E rosas também.
s.d.
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.
 - 10.
 
Descobre que afinal a melhor maneira de viajar é sentir. 
 
PASSAGEM DAS HORAS
Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si-próprio pela plena liberalidade de espírito,
E amar as coisas como Deus.

Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,
Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia
Que a dor real das crianças em quem batem
(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —
E porque é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)
Eu, enfim, que sou um diálogo contínuo
Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,
Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque
E faz pena saber que há vida que viver amanhã.
Eu, enfim, literalmente eu,
E eu metaforicamente também,
Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso

Às leis irrepreensíveis da Vida,
Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...
Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,
Sem personalidade com valor declarado,
Eu, o investigador solene das coisas fúteis,
era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso
E que acho que não faz mal não ligar importância à pátria
Porque não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz...
Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,
Como uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço,
Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,
Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,
Eu, o polícia que a olha, parado para trás na álea,
Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um colar com guizos,
Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina
Coada através das árvores do jardim público,
Eu, o que os espera a todos em casa,
Eu, o que eles encontram na rua
Eu, o que eles não sabem de si-próprios,
Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,
Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,
O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,
O lugar onde se encontram as duas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,
A cicatriz do sargento mal-encarado,
O sebo na gola do explicador doente que volta para casa,
A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,
E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...
Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,
Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,
Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,
O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,
O sacana do José que prometeu vir e não veio
E a gente tinha uma partida para lhe fazer...
Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...
Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão porque elas se abrem,
E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...
Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,
Sem que haja uma lápide no cemitério para o irmão de tudo isto,
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer coisa...
Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,
E uso o monóculo para não parecer igual à ideia real que faço de mim,
Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,
Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,
Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...
Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,
O baú das iniciais gastas,
A intonação das vozes que nunca ouviremos mais —
Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo
E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.
A Brígida prima da minha tia,
O general em que elas falavam — general quando elas eram pequenas,
E a vida era guerra civil a todas as esquinas...
Vive le mélodrame où Margot a pleuré!
Caem folhas secas no chão irregularmente,
Mas o facto é que sempre é outono no outono,
E o inverno vem depois fatalmente,
E há só um caminho para a vida, que é a vida...

Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos
Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,
E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão
Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.

Todos os amantes beijaram-se na minha alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram a rua, ao meu braço todos os velhos e os doentes,
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.

(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,
Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,
Com as cabeças femininas coiffées de lin
E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...
Aquela que é o anel deixado em cima da cómoda,
E a fita entalada com o fechar da gaveta,
Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,
Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la...
Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,
Definitivamente para todo o resto do Universo,
E que os carros me passem por cima)

Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui souteneur de todas as emoções,
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
Troquei olhares com todos os motivos de agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia da forja das emoções!
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
A cadela a uivar de noite,
O tanque da quinta a passear à roda da minha insónia
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
Ó fome abstracta das coisas, cio impotente dos momentos,
Orgia intelectual de sentir a vida!

Obter tudo por suficiência divina —
As vésperas, os consentimentos, os avisos,
As coisas belas da vida —
O talento, a virtude, a impunidade,
A tendência para acompanhar os outros a casa,
A situação de passageiro,
A conveniência em embarcar lá para ter lugar,
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

Poder rir, rir, rir despejadamente,
Rir como um copo entornado,
Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.
1916
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.
 - 26a.
 
 

Álvaro de Campos e o Sensacionismo

O movimento sensacionista é formado por Caeiro, Campos e Reis.
[ilustração: José de Guimarães. «Fernando Pessoa». 1985
]
«Cada um destes 3 poetas realiza uma coisa que há muito se andava procurando por esse tempo fora.»
Se a avaliação dos movimentos literários se deve fazer pelo que trazem de novo, não se pode pôr em dúvida de que o movimento Sensacionista português é o mais importante da actualidade. É tão pequeno de aderentes quanto grande em beleza e vida. Tem só 3 poetas e tem um precursor inconsciente. Esboçou-o levemente, sem querer, Cesário Verde. Fundou-o Alberto Caeiro, o mestre glorioso [...]. Tornou-o, logicamente, neoclássico o Dr. Ricardo Reis. Moderniza-o, paroxiza-o — verdade que descrendo-o [?] e desvirtuando-o —.o estranho e intenso poeta que é Álvaro de Campos.
Estes quatro — estes três nomes são todo o movimento. Mas estes três nomes valem toda uma época literária.
Cada um destes 3 poetas realiza uma coisa que há muito se andava procurando [?] por esse tempo fora, e em vão. Caeiro criou, de uma vez para sempre, a poesia da Natureza, a única [?] poesia da Natureza. R. Reis encontrou enfim a fórmula neoclássica. Álvaro de Campos revelou o que todos os [...] paroxistas [?] e modernistas vários [?] andam há anos a querer fazer. Cada um destes poetas é supremo no seu género.
1916?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.

In http://multipessoa.net/labirinto/heteronimia/11

domingo, 21 de novembro de 2010

Álvaro de Campos e o Futurismo

 Para compreender a "Ode Triunfal" de Álvaro de Campos, importa conhecer o Futurismo.
 

Movimento de revolução estética desencadeado pela publicação, por Marinetti, do manifesto "Fundação e Manifesto do Futurismo", na primeira página do jornal Le Figaro , a 20 de Fevereiro de 1909, seguido de uma série de outros manifestos que irão nos anos seguintes fazer alastrar por toda a Europa os processos e técnicas artísticas futuristas. Através de uma linguagem que choca pela sua agressividade e pelo seu carácter iconoclasta, o tom violento, interpelativo e provocatório dos manifestos futuristas funda-se num ultimato lançado com raiva a um passado que vigora ainda no presente nas formas estéticas, ideias, crenças e atitudes dominantes, por vezes simbolizadas numa figura pública que urge abater espiritualmente (cf., por exemplo, o Manifesto Anti-Dantas de Almada Negreiros), em nome de um futuro cujos traços definidores se concentram no dinamismo, na exaltação da técnica, na simultaneidade de espaços, de tempos e de sensações, na fusão de expressões artísticas, na dessacralização das poéticas convencionais. Ao mesmo tempo, a poética futurista postula a necessidade de a linguagem literária dever contribuir também para a demolição de hábitos culturais estereotipados e retrógrados. Os poemas futuristas são facilmente identificáveis por uma série de recursos destinados a abalar o leitor: profusão de exclamações, de apelos, de neologismos criados pela associação inédita de palavras, pelo emprego de termos insultuosos, pela autonomia concedida ao significante linguístico, numa exploração dos efeitos visuais e fónicos das palavras, pela introdução de grafismos no poema, pela ruptura com a lógica sintáctica tradicional: longas enumerações de frases nominais, uso do verbo no infinitivo, uso aleatório da pontuação e de maiúsculas.
A introdução do futurismo em Portugal é devida à assimilação dos seus princípios por Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza Cardoso, residentes em Paris. Os principais textos portugueses de índole próxima do futurismo ("A Cena do Ódio" (1915), de Almada Negreiros, "Manucure" e "Apoteose" (ambos de 1915), de Mário de Sá-Carneiro, e a "Ode Triunfal" (1914) de Álvaro de Campos) estão associados ao escândalo criado em torno da publicação da revista Orpheu , em 1915, embora, na verdade, a revista fundada por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro concilie ainda elementos tradicionais com caracteres de vanguarda, ao mesmo tempo que se assume como síntese de todos os movimentos literários do Modernismo, que abarcaria, além do futurismo, o paulismo, o interseccionismo, o simultaneísmo, o simbolismo, o decadentismo ou o sensacionismo. Com efeito, a teorização do sensacionismo nos escritos de Fernando Pessoa confere ao movimento sensacionista contornos mais vastos que os que definem o Futurismo, reconhecendo neste movimento de vanguarda apenas uma influência, já que o sensacionismo derivaria de três movimentos: do simbolismo francês, do panteísmo transcendentalista português e "da baralhada de coisas sem sentido e contraditórias de que o futurismo, o cubismo e outros quejandos são expressões ocasionais, embora, para sermos exactos, descendamos mais do seu espírito do que da sua letra" (PESSOA, Fernando - Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação , Lisboa, Ática, pp. 134-138). Só em 1917 é que o futurismo português conhecerá uma efémera apoteose com a 1.a Conferência Futurista de 14 de Maio de 1917, onde Almada lê o seu "Manifesto Futurista às gerações portuguesas do século XX", com a formação, por Almada e Santa-Rita, do Comité futurista de Lisboa e com a edição, em Novembro, da revista Portugal Futurista , apreendida após o lançamento do seu número inaugural.
Futurismo. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-11-21].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$futurismo>.


 Se quiser conhecer o Manifesto de Marinetti, pode aceder a:
http://entrelinhas.livejournal.com/53219.html

A Arte Futurista:
 Umberto Boccioni (1882-1916)

No Manifesto Técnico da Pintura Futurista (11 de abril de 1910), Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Luigi Russolo, Giacomo Balla e Gino Severini,  defendem que “o gesto, (...) não será mais um momento detido do dinamismo universal: será, decididamente, a sensação dinâmica eternizada como tal. Tudo se move, tudo corre, tudo se desenrola rápido. (…) Pela persistência da imagem na retina, as coisas em movimento  multiplicam-se,  deformam-se, sucedendo-se como vibrações no espaço que percorrem. Assim, um cavalo correndo não tem quatro patas: tem vinte e os seus movimentos são triangulares”. 

Giacomo Balla (1871-1958)- Velocidade de carro
 
Para terminar, faço-lhe um convite para ver: 
 



terça-feira, 16 de novembro de 2010

Ricardo Reis: influências clássicas


Para compreender melhor a poesia de Ricardo Reis, é importante conhecer Epicuro e Horácio! 

 Epicuro nasceu em Samos, em 341 a.C. Fundou a sua própria escola filosófica, chamada O Jardim, onde residia com alguns amigos, na cidade de Atenas. Leccionou  até à sua morte, em  271 a. C. Segundo os estudiosos teve uma vida marcada pelo ascetismo, serenidade e doçura.



1. Felicidade e Prazer
Devemos estudar os meios de alcançar a felicidade, pois, quando a temos, possuímos tudo e, quando não a temos, fazemos tudo por alcançá-la. Respeita, portanto, e aplica os princípios que continuadamente te inculquei, convencendo-te de que eles são os elementos necessários para bem viver. Pensa primeiro que o deus é um ser imortal e feliz, como o indica a noção comum de divindade, e não lhe atribuas jamais carácter algum oposto à sua imortalidade e à sua beatitude. Habitua-te, em segundo lugar, a pensar que a morte nada é, pois o bem e o mal só existem na sensação. De onde se segue que um conhecimento exacto do facto de a morte nada ser nos permite fruir esta vida mortal, poupando-nos o acréscimo de uma ideia de duração eterna e a pena da imortalidade. Porque não teme a vida quem compreende que não há nada de temível no facto de se não viver mais. É, portanto, tolo quem declara ter medo da morte, não porque seja temível quando chega, mas porque é temível esperar por ela.
É tolice afligirmo-nos com a espera da morte, visto ser ela uma coisa que não faz mal, uma vez chegada. Por conseguinte, o mais pavoroso de todos os males, a morte, nada significa para nós, pois enquanto vivemos a morte não existe. E quando a morte veio, já não existimos nós. A morte não existe, portanto, nem para os vivos nem para os mortos, pois para uns ela não é, e pois os outros não são mais.
(...) Deve, em terceiro lugar, compreender-se que, de entre os desejos, uns são naturais e os outros vãos e que, de entre os naturais, uns são necessários e os outros somente naturais. Finalmente, de entre os desejos necessários, uns são necessários à felicidade, outros à tranquilidade do corpo e outros à própria vida. Uma teoria verídica dos desejos ajustará os desejos e a aversão à saúde do corpo e à ataraxia da alma, pois é esse o escopo de uma vida feliz, e todas as nossas acções têm por fim evitar ao mesmo tempo o sofrimento e a inquietação. Quando o conseguimos, todas as tempestades da alma se desfazem, não tendo já o ser vivo de dirigir-se para alguma coisa que não possui, nem buscar outra coisa que possa completar a felicidade da alma e do corpo. Porque nós buscamos o prazer somente quando a sua ausência causa sofrimento. Quando não sofremos, não sabemos que fazer do prazer. E por isso dizemos que o prazer é o começo e o fim de uma vida venturosa. O prazer é, na verdade, considerado por nós como o primeiro dos bens naturais, é ele que nos leva a aceitar ou a rejeitar as coisas, a ele vamos parar, tomando a sensibilidade como critério do bem. Ora, pois que o prazer é o primeiro dos bens naturais, segue-se que não aceitamos o primeiro prazer que vem, mas em certos casos desdenhamos numerosos prazeres quando têm por efeito um tormento maior. Por outro lado, há numerosos sofrimentos que reputamos preferíveis aos prazeres, quando nos trazem um maior prazer. Todo o prazer, na medida em que se conforma com a nossa natureza, é portanto um bem, mas nem todo o prazer é entretanto necessariamente apetecível. Do mesmo modo, se toda a dor é um mal, nem toda é necessariamente de evitar. Daqui procede que é por uma sábia consideração das vantagens e dissabores que traz que cada prazer deve ser apreciado. Na verdade, em certos casos, tratamos o bem como um mal e, noutros, o mal como um bem. (...)
Depender apenas de si mesmo é, em nossa opinião, grande bem, mas não se segue, por isso, que devamos sempre contentar-nos com pouco. Simplesmente, quando a abundância nos falece, devemos ser capazes de contentar-nos com pouco, pois estamos persuadidos de que fruem melhor a riqueza aqueles que menos carecem dela e que tudo que é natural se alcança facilmente, enquanto é difícil obter o que o não é. (...)
O princípio de tudo isto e, ao mesmo tempo, o maior bem é, portanto, a prudência. Devemos reputá-la superior à própria filosofia, pois que ela é a fonte de todas as virtudes que nos ensinam que não se alcança a vida feliz sem a prudência, a honestidade e a justiça e que a prudência, a honestidade e a justiça não podem obter-se sem o prazer.
As virtudes, efectivamente, provêm de uma vida feliz, a qual, por sua vez, é inseparável das virtudes.


Epicuro, in "Carta a Meneceu"

2. Nenhum Prazer é um Mal em Si
Nenhum prazer é um mal em si, mas certas coisas capazes de engendrar prazeres trazem consigo maior número de males que de prazeres. Se as coisas que proporcionam prazeres às pessoas dissolutas pudessem livrar-lhe o espírito das angústias que experimentam diante dos fenómenos celestes, da morte e dos sofrimentos, e se, por outro lado, lhes ensinassem o limite dos desejos, nada teriamos de censurar nelas, pois que as cumulariam de prazeres, sem mistura alguma de dor ou pesar, os quais constituem precisamente o mal.


Epicuro, in "Máximas Fundamentais"
In http://citador.pt/pensar.php?pensamentos=Epicuro&op=7&author=166 
Quinto Horácio Flaco (8 de Dezembro de 65 a.C.  - 27 de Novembro de 8 a.C ?.)
Poeta importante não só na sua época, mas também na história da literatura ocidental, sobretudo do séc. XV ao séc. XVIII. 
A Epistola ad Pisones (mais conhecida por Arte Poética)  e as  Odes influenciaram os nossos poetas, nomeadamente, Camões, Correia Garção, Ricardo Reis, entre outros. 

Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, uina liques, et spatio breui
spem longam reseces. dum loquimur, fugerit inuida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.

Horácio, Odes, I, 11


Não procures, Leuconoe, - ímpio será sabê-lo -
que fim a nós os dois os deuses destinaram;
não consultes sequer os números babilónicos:
Melhor é aceitar! E venha o que vier!
Quer Júpiter te dê ainda muitos Invernos,
quer seja o derradeiro este que ora desfaz
nos rochedos hostis ondas do mar Tirreno,
vive com sensatez destilando o teu vinho
e, como a vida é breve, encurta a longa esp'rança.
De inveja o tempo voa enquanto nós falamos:
trata pois de colher o dia, o dia de hoje,
que nunca o de amanhã merece confiança.

Trad. de David Mourão-Ferreira
Não pode haver poesia sem música. Vamos ouvir uma obra do autor alemão, Pachelbel: 
 

sábado, 13 de novembro de 2010

Alberto Caeiro, o Mestre

 Para ver, ouvir e pensar:

 http://www.youtube.com/watch?v=y3_9eoLMNyA&feature=related

Cesário Verde
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai
andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos ...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema III"



  • Que relações poderemos estabelecer entre a poesia de Cesário Verde e a de Alberto Caeiro?

  http://www.ruadapoesia.com/content/category/1/20/32/

  • E para terminar, o que SENTEM ao ouvir, de olhos fechados, Itzhak Perlman -Violin Concerto in A minor,RV 356 Op 3 No 6:

http://www.youtube.com/watch?v=eTPiZup0QmM&feature=related 

sábado, 6 de novembro de 2010

Orpheu



A revista Orpheu

Orpheu, revista luso-brasileira, marca o início do modernismo em Portugal. O primeiro número da responsabilidade do brasileiro  Ronaldo de Carvalho e de Luís de Montalvor, foi publicado em 1915 e incluía textos de diversos autores, nomeadamente, Fernando Pessoa, Mário Sá Carneiro, Raul Leal, Almada Negreiros.
Logo neste primeiro número, a revista foi alvo de grandes críticas, sobretudo por causa dos poemas “Ode Triunfal”, de Álvaro de Campos e “Manucure”, de Mário de Sá Carneiro, tendo causado um grande escândalo e polémica entre o público em geral.
Aproveitando o escândalo da primeira edição, é lançado o segundo número, orientado mais para o futurismo e dirigido por Fernando Pessoa e Mário Sá Carneiro, com textos de Ângelo Lima, Raul Leal, Santa -Rita Pintor, entre outros.
O terceiro número da revista não chegou a ser publicado por falta de dinheiro.
Orpheu marcou a História da Literatura Portuguesa do século XX, sendo considerada um marco inicial do Modernismo em Portugal. Os protagonistas da revista ficaram conhecidos como «Geração de Orpheu».

Vera Pereira
http://pt.wikipedia.org/wiki/Revista_Orpheu
http://memoriavirtual.net/tag/almada/

Guilherme de Santa Rita ( Lisboa-1889-1918) "O Orpheu dos Infernos"

 Quem era Orpheu?

 Personagem mítica, descrita de maneiras diferentes pelos poetas e obscurecida por numerosas lendas. Entretanto, Orfeu  destaca-se sempre como o músico por excelência que, com a lira ou a citara, apazigua os elementos desencadeados pela tempestade, enfeitiça as plantas, os animais, os homens e os deuses. Graças a esta magia da música, chega a obter dos deuses infernais a libertação da amada Eurídice, morta por uma serpente, quando fugia das investidas de Aristeu. Mas uma condição foi-lhe imposta: que ele não a olhasse antes de ela voltar à claridade do dia. Contudo, no meio do caminho, Orfeu  olha para trás : Eurídice desaparece para sempre. Inconsolável, acaba os seus dias mutilado pelas mulheres trácias, cujo amor ele desdenhava.

http://sites.google.com/site/dicionariodemitologia/orfeu (texto adaptado)

Para ouvir:

Monteverdi (Sec. XVII)- ORFEO - Prologo, Toccata, Sinfonie, Moresca

Igor Stravinsky (século XX) - Orpheus, ballet (1/3)


ORFEU REBELDE

Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam rouxinóis...

Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que ha' gritos como há nortadas
Violências famintas de ternura.

Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.

Miguel Torga


Aprende
A não esperar por ti
pois não te encontrarás
No instante de dizer sim ao destino
Incerta
paraste
emudecida
E os oceanos depois devagar te rodearam

A isso chamaste Orpheu Eurydice
Incessante intensa lira vibrava ao lado
Do desfilar real dos teus dias
Nunca se distingue bem o vivido do não vivido
O encontro do fracasso
Quem se lembra do fino escorrer da areia na ampulheta

Quando se ergue o canto
Por isso a memória sequiosa quer vir à tona
Em procura da parte que não deste
No rouco instante da noite mais calada
Ou no secreto jardim à beira-rio
em Julho"

- Sophia M. B. Andresen -