Por perdidos as gentes nos julgavam;
As mulheres c'um choro piedoso,
Os homens com suspiros que arrancavam;
Mães, esposas, irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desesperarão, e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo.
90 "Qual vai dizendo: -" Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento!" -
91 "Qual em cabelo: -"Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Por que is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha, e não é vossa?
Como por um caminho duvidoso
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento
Quereis que com as velas leve o vento?" -
92 "Nestas e outras palavras que diziam
De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos os seguiam,
Em quem menos esforço põe a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quase movidos de alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão com elas se igualavam.
93 "Nós outros sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
Os Lusíadas, Canto IV
Amélia Pinto Pais, Ensinar Os Lusíadas, 1.a ed., Areal Ed., 1997
“A construção desta cena é feita principalmente através da alternância de planos: desde o plano de conjunto inicial (“as gentes (...) por perdidos nos julgavam”) aos planos de pormenor (“as mulheres (...) os homens”) e mesmo aos grandes planos (“Qual vai dizendo (...) Qual em cabelo”). Termina com novo plano de conjunto, na estrofe 92, e com a narração do que se passava a bordo.
A consternação era geral na cidade e a bordo: tinha-se a noção dos perigos, de que o caminho era “tão longo e duvidoso”, de que, muito provavelmente, os que partiam não iriam regressar. Deste clima de consternação davam conta as mulheres “cum choro piadoso” e os homens “com suspiros que arrancavam". Particularmente débeis eram, contudo, as mulheres: “Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso /Amor mais desconfia acrescentavam/A desesperação e frio medo/De já nos não tornar a ver tão cedo”. Surgem então, como a comprová-lo, dois grandes planos, com as palavras de uma Mãe e de uma Esposa, personagens colectivas, dadas em discurso directo.
A mãe que nos fala na estrofe 90 é o símbolo da velhice que se abandona, em troca de uma morte mais que certa no mar. Daí que as suas palavras sejam de incompreensão e de perplexidade, dada pelas interrogações angustiadas que ficam no ar, sem resposta. (…)
Repare-se nas sonoridades suaves em i (vogal doce), contrastando, depois, com a dureza das sonoridades em vogal aberta a. O mesmo discurso dorido, perplexo, interrogativo é a tónica das palavras da Esposa, na estrofe 91. (…) Como se vê, esta Esposa interroga, queixa-se e, de certo modo, censura e acusa. A adjectivação é extremamente expressiva: “doce e amado esposo”; o amor é reafirmado como “vão contentamento” (“engano de alma ledo e cego” se lhe chamara no episódio de Inês de Castro), “sem quem não quis amor que viver possa”, “afeição tão doce nossa” (veja-se a doçura destas aliterações em s).
Aquele que parte não tem o direito de o fazer, pois aventura algo que lhe não é pertença privada, “essa vida que é minha e não é vossa”. Ainda no capítulo das sonoridades, repare-se nas aliterações e rima interna do último verso: “Quereis que com as velas leve o vento?” Trata-se de algumas das mais belas palavras de amor jamais escritas, sobretudo tendo em conta que se trata do amor conjugal, raramente tratado na nossa tradição lírica ocidental.
Após estes dois grandes planos, retoma-se na estrofe 92 a visão de conjunto: frágeis são os que ficam, mães, esposas, irmãs, é certo, mas também os velhos e os meninos. A própria natureza se comove e se associa numa dor à escala cósmica. Aos que partem só resta uma saída: partir depressa, sem o “despedimento costumado”.
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